Faltando menos de 40 dias para a bola rolar oficialmente na Copa do Mundo da Austrália e Nova Zelândia, os países estão nos preparativos finais para receber a maior competição do ano pela primeira vez na história. Além da sede inédita na Oceania, a edição será a maior em número de participantes, com 32 seleções na disputa, sendo 8 estreantes.
Para entender como a Austrália espera o Mundial deste ano, conversamos com Mariel Hecher, única brasileira que atua na primeira divisão do país. Em entrevista exclusiva ao Fut das Minas, Mariel relembrou o início da carreira no futsal, a chegada ao profissional na Austrália e os investimentos no futebol feminino australiano desde a escolha do país para sediar a Copa do Mundo Feminina de 2023.
Do futsal para o futebol profissional na Austrália
O início de Mariel no futebol foi como o de diversas meninas brasileiras, jogando com os meninos e conquistando aos poucos espaços dentro das quadras de futsal de Caxias do Sul-RS, onde tudo começou. Apaixonada por esportes, Mariel dividia os treinos de futsal com os de atletismo, mas uma lesão nas costas a tirou das pistas por alguns meses, seguindo de vez o caminho das quadras. “Foi engraçado porque se não fosse eu ter machucado minhas costas e um médico ter dito que eu tinha que ter parado por uns três meses, talvez eu teria continuado no atletismo e nem teria ido para o futsal e para o futebol, né? Se não fosse por isso, vai saber onde que a vida estaria hoje, né?”, relembra Mariel.
Depois de iniciar com os meninos, a atleta passou a jogar no time feminino adulto da cidade, ainda com 14 anos. Do time da cidade, uma amiga a convidou para disputar um campeonato pela cidade de Pato Branco, no Paraná, e aí a carreira no futsal foi tomando proporções ainda maiores.
Após a competição, surgiu o convite para ficar de vez na cidade paranaense, e Mariel teve que convencer o pai e família para poder mudar de estado e começar a vida como atleta de futsal. Após três temporadas, chegou o convite para jogar em Araraquara, interior de São Paulo e depois a proposta para São José dos Campos, onde Mariel viu a oportunidade de conciliar os estudos com o futsal. A gaúcha ficou por cinco temporadas em São José e concluiu a faculdade de fisioterapia.
Após a formação acadêmica, em 2016, Mariel decidiu que iria tentar oportunidades de trabalho na Austrália, onde seu irmão morava. A ida para o outro lado do mundo fez com que a atleta acabasse ‘desistindo’ da carreira no futebol. Pelo menos era o que ela pensava.
Ao chegar ao novo país, percebeu que precisava fazer novas amizades e nada melhor que a união do futebol para isso. “Eu terminei a faculdade. Me aposentei do futsal, né? E vim para cá, aí primeira semana tu não conhece muita gente, eu tava só em volta dos amigos do meu irmão. Como é que eu vou conhecer gente? Sei lá, uma peladinha para jogar, né?”, conta a atleta. Mariel passou a ligar e mandar e-mail para times de futsal feminino e a criar contatos com clubes para voltar a treinar. Após falar com um treinador brasileiro, surgiu a oportunidade de começar a jogar futsal em solo australiano.
Mariel jogou campeonatos e viajou por toda a Austrália até que a liga de futsal australiana foi encerrada por problemas com a federação do país. Mas a vontade de continuar treinando e competindo continuou. A brasileira viu nos campos a oportunidade de seguir jogando. Comprou uma chuteira e passou a jogar no time que o pai de uma amiga era técnico.
Mariel iniciou no Lions FC, time que faz parte do mesmo grupo do Brisbane Roar, da cidade de Brisbane, clube profissional em que a atleta joga atualmente. Mas o início não foi fácil, acostumada com o futsal, Mariel sofreu várias lesões na adaptação para o campo. “O condicionamento eu tinha, mas é bem diferente. Então, demorou um tempo para o meu corpo se adaptar e algumas lesões aqui foram bem complicadas no meu primeiro ano”, explica.
Depois da adaptação no campo, Mariel passou a buscar um novo objetivo: integrar a primeira divisão da Austrália. Como na época a liga só permitia três atletas estrangeiras por elenco, a brasileira teve que passar por vários treinamentos e disputar a vaga com atletas renomadas de outros países.
E apesar de não ser selecionada na primeira vez, Mariel aproveitou os testes para evoluir ainda mais no futebol. “Foi a melhor coisa que eu fiz, eu diria que se eu aprendi a jogar futebol de campo foi por ter ido lá e estar nesse ambiente. Eu tava jogando com gente que hoje em dia eu vejo onde elas estão eu falo ‘meu Deus’”, revela Mariel.
Após mais uma lesão, a nova chance de conseguir um contrato profissional foi em 2020, na pandemia. Com as fronteiras da Austrália fechadas, Mariel teve oportunidade de tentar novamente integrar a liga profissional e, desta vez, conseguiu o ‘Visa Player’ e seu primeiro contrato na principal liga australiana. Neste ano, Mariel estava indo para sua terceira temporada no profissional, mas uma lesão de LCA a tirou dos gramados e a atleta está atualmente em fase de recuperação.
Liga de futebol feminino australiana
A-League Women, conhecida como Liberty A-League por motivos de patrocínio, é a liga de futebol feminino da primeira divisão da Austrália que iniciou em 2008 com oito times. Atualmente, são onze equipes na disputa e neste ano a competição terá sua maior temporada, com 22 jogos, que incluem a temporada regular e um torneio de playoff da série final.
O time de Mariel, o Brisbane Roar, conquistou a liga por três vezes, sendo o último título na temporada de 2017/18, e apesar da popularidade do futebol feminino estar aumentando na Austrália nos últimos anos, a grande paixão australiana nos esportes é o rugby. Mariel, que segue trabalhando com fisioterapia, conta que, inclusive, alguns dos seus pacientes que são pais e mães, têm incentivado os filhos e filhas a praticarem futebol por considerarem o rugby um esporte de ‘mais contato’ e que pode ocasionar lesões mais perigosas, principalmente na cabeça.
Ainda que o rugby tenha maior popularidade no país, a brasileira relata que a forma dos australianos viverem a paixão pelo esporte e pelo time do coração é diferente da forma com que o torcedor brasileiro vive o futebol.
Mesmo com estádios lotados para os jogos de rugby, a pouca festa da torcida surpreendeu Mariel, que estava acostumada a ver estádios cheios e barulhentos no Brasil. “Esses dias fui pela primeira vez [a um jogo de rugby] e tinha umas 50 mil pessoas, mas assim, todos quietos durante o jogo. E eu pensei ‘gente, no Brasil se tem 50 mil pessoas para assistir o jogo de futebol, a galera vai estar gritando, cantando, pulando, tem faixas, não todo mundo quieto olhando assim”, relata a atleta.
Preparativos para a Copa do Mundo
Desde que Austrália e Nova Zelândia foram escolhidas para sediar a Copa do Mundo de 2023, Mariel conta que o clima no país mudou e constantemente tem visto outdoors com imagens das Matildas, como é conhecida a seleção feminina na Austrália, e também da sua maior craque, a jogadora do Chelsea, Sam Kerr.
Os uniformes das Matildas estão sendo vendidos em diversos lugares e a procura aumentou, assim como as campanhas de publicidades acerca da seleção feminina, chegando a ser maior do que as da masculina atualmente. A Disney, por exemplo, produziu uma série original sobre a ascensão do futebol feminino na Austrália e a preparação da equipe para a Copa do Mundo deste ano. Denominada ‘Matildas: A Caminho do Mundial’, a série já está disponível no Disney+.
Além do apoio a seleção local, a liga australiana pela primeira vez terá jogos de ida e volta e um campeonato mais longo, principalmente devido aos incentivos da federação no futebol feminino. A visibilidade também está aumentando, segundo Mariel. Cada vez mais os torcedores estão comparecendo aos estádios para acompanhar a liga feminina.
Reflexo disso, é que a venda de ingressos para a Copa do Mundo já superou a da última Copa, em 2019, na França. Além disso, o jogo de estreia da Austrália, contra a Irlanda, será no maior estádio da Copa.
Inicialmente, o Stadium Australia estava reservado apenas para partidas do mata-mata no Mundial. No entanto, devido ao grande interesse em ingressos para esse duelo, a FIFA tomou a decisão de transferir a partida e espera contar com cerca de 100 mil torcedores para acompanhar a estreia das donas da casa.
Com maior incentivo dos pais para o futebol, como citou Mariel, mais crianças e principalmente meninas estão começando a praticar futebol na Austrália. Mesmo com a relação diferente do que temos no Brasil, onde a maioria das crianças – em grande maioria os meninos – são incentivados ao futebol desde cedo, Mariel percebe que cada vez mais essa relação está se intensificando também no país do Novíssimo Mundo. “Daqui uns 10, 20 anos, talvez mude porque tem uma nova geração que gosta de futebol, está se apaixonando pelo jogo e isso nunca tinha acontecido aqui”, conta Mariel.
Relação entre Pia e treinador da Austrália
Perguntada sobre as chances de Brasil e Austrália na Copa do Mundo, Mariel traça um paralelo dos atuais comandantes nas seleções dos dois países (Pia Sundhage assumiu o Brasil em 2019 e Tony Gustavsson passou a ser técnico da Austrália em 2020).
Suecos e velhos conhecidos, Pia e Tony atuaram juntos na seleção dos Estados Unidos, quando Tony foi assistente da atual treinadora brasileira. Após conquistarem o mundo pelos Estados Unidos, os dois assumiram trajetórias parecidas nos novos desafios profissionais: comandar a renovação das seleções de Brasil e Austrália.
“Eu acho que a Austrália, o foco deles, com certeza é de tentar ganhar o mundial em solo australiano. Isso desde o início tem sido um foco e o Tony Gustavsson, desde que ele assumiu, foi bem criticado, porque ele repaginou Austrália, né? Tipo no Brasil, quando a Pia chegou, mas ela repaginou o time e são projetos com quase o mesmo tempo”, explica Mariel.
Na Copa do Mundo, Pia e Tony terão pela frente o maior desafio à frente das duas seleções e a chance de consolidar um trabalho muito questionado, principalmente o de Pia, após a eliminação para o Canadá nas quartas de final das Olimpíadas de Tóquio.
No torneio, Tony comandou a Austrália no maior desempenho da seleção em Jogos Olímpicos e ficou com o quarto lugar da competição, perdendo a disputa da medalha de bronze para os Estados Unidos e ganhando ainda mais credencial para seguir o trabalho com as Matildas.
Ele foi bem criticado no começo da mesma forma que a Pia foi bem criticada, mas agora os dois estão tendo grandes resultados e é isso que tu quer, que o time esteja pronto para a Copa do Mundo. Então acho que a expectativa de Brasil e Austrália é grande. Eu não acredito que eles sejam favoritos, porém a intenção e o objetivo deles com certeza é terminar em primeiro. Eu diria para ficar de olho na Austrália, que eu acho que vai ser uma copa histórica por jogar em casa”.
Mariel Hecher
Devido ao chaveamento da Copa do Mundo, as seleções de Brasil e Austrália podem se enfrentar em fases eliminatórias. Mariel vai torcer para as duas equipes avançarem, mas em caso de confronto direto, o coração brasileiro vai falar mais alto.
Sonho em conhecer Marta
Com a Copa do Mundo chegando, Mariel tem ainda mais um motivo para ficar animada. Na primeira fase do Mundial, a seleção brasileira terá a sede de treinamentos em Brisbane, mesma cidade onde a gaúcha mora atualmente. Colada na seleção, ela não esconde o desejo de conhecer Marta e se preciso, vai até pedir uma ajudinha para uma velha conhecida.
“Eu tô bem ansiosa porque eu conheço a Antônia. Eu joguei com ela. Eu falei para ela que eu queria levar ela para ver os Cangurus e eu quero conhecer a Marta também”, completa Mariel.
Caminho do Brasil
O Brasil está no Grupo F da Copa do Mundo, ao lado de França, Jamaica e Panamá. Na primeira fase, a Seleção Brasileira estreia diante do Panamá, no dia 24 de julho, às 8h, no Hindmarsh Stadium (Adelaide).
Pela segunda rodada, no dia 29, enfrenta a França, às 7h, no Brisbane Stadium (Brisbane) e fecha a primeira fase no dia 02 de agosto, contra a Jamaica, às 7h, no Melbourne Rectangular (Melbourne). Todos os jogos no horário de Brasília.
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