A luta para virar o jogo

Paulinha, jogadora da equipe feminina do Cruzeiro de Macaíba, supera o preconceito e junto com as companheiras de equipe, faz do futebol feminino no RN um verdadeiro campo de batalha por igualdade de salários e melhores condições estruturais 

Por Juliana Lima e Joan Fontes

Infância

Ana Paula Santos da Silva, 25 anos, mais conhecida como Paulinha, tem a bola como principal companheira nas memórias de infância. Ela cresceu jogando futebol com seus amigos nas ruas, nas calçadas, nas praças, em qualquer lugar que fosse. A princípio tudo não passava de uma simples brincadeira de criança, certo? Não foi bem assim. Desde menina, Paulinha já via de perto o preconceito pelo fato de querer brincar de bola, até da sua própria família.

 “Infelizmente, é inevitável a gente sofrer preconceito nesse meio. Quando eu era criança, sofri preconceito da minha família e de pessoas que jogavam na praça do meu bairro. Sempre tive que provar que eu conseguia fazer bem aquilo. Quando chegava gente nova no bairro, não aceitavam, diziam que eu não era capaz. Já na minha família, sempre tem aquilo de mandar eu ir brincar de boneca, ou então, você não deveria fazer isso porque não é feito pra mulher”, relembra. 

Paulinha sempre ouviu que sua vontade de jogar futebol era apenas uma fase e que quando crescesse iria deixar de lado a sua paixão. Mas não foi isso que aconteceu. Cada vez mais queria estar inserida nesse meio. Mas o principal episódio de preconceito foi na escola, e justamente por quem deveria ensinar respeito e tolerância aos alunos, ela lembra até hoje como foi esse dia. 

Foto: Acervo pessoal

“Um evento que me marcou muito foi quando eu estava na quinta série e ia jogar bola com os meninos no recreio. Quando cheguei pra jogar, a coordenadora foi na quadra e me tirou, porque disse que eu era mulher e não deveria estar jogando bola, principalmente com os meninos. Disse que isso ia afetar minha feminilidade. Na época eu não entendia, mas lembro de ter ficado muito chateada e de ter ido reclamar na direção da escola. Porém, a direção apoiou a coordenadora e tive que ficar jogando escondido dela durante um ano”, afirma. 

Mesmo proibida de jogar na própria escola por ser mulher, Paulinha contava com o apoio dos colegas. Juntos, eles sempre davam um jeito de burlar o impedimento. “Os meninos não viam problemas de eu jogar com eles. A coordenadora não deixava a gente pegar a bola pra jogar na quadra se eu estivesse no meio. A gente achava alternativas, como encher garrafas de água para fazer as traves, ou de areia, e ia jogar. Teve outro dia que ela me tirou da quadra me puxando pelo braço e disse que eu não ia mais jogar, porque se eu levasse uma bolada nos seios, eles não iriam mais crescer, e foi bem chato. Mas sempre tive aquilo de ir contra tudo e contra todos”, finaliza. 

Hoje, Paulinha conta com todo o apoio da família, mas isso foi um processo longo e de paciência, porém tudo já foi superado. “Agora todos acompanham meus treinos, comparecem aos jogos e torcem muito”, conta. A tristeza e a incerteza gerada pela falta de apoio, agora deu lugar a felicidade e o orgulho da família.  

“Toda garota que vê Marta jogar se inspira nela. Pra chegar onde eu estou, me inspirei na rainha e em Cristiane. Mas hoje o que me mantém são minhas companheiras de equipe, hoje me inspiro nelas”. Paulinha, que está no centro da fileira de baixo, posa com as companheiras de equipe. (Foto: Acervo Pessoal).

Rotina e treinos

O futebol feminino ainda é uma categoria onde um pequeno número de mulheres vivem apenas da profissão. Paulinha é uma delas, e precisa dividir o sonho de jogar profissionalmente com a faculdade de administração na UFRN, ela cumpre 6h no estágio, trinta por semana. Conciliar estudo, trabalho e futebol não é nada fácil. “Até hoje não sei como consigo, mas vou vivendo dia a dia, semana a semana até acabar o semestre e iniciar um novo. Minha rotina de treino varia muito de semestre a semestre, de competição para competição, porque o cenário do futebol feminino é muito instável”, relata. 

Atualmente, Paulinha joga em dois times, o Cruzeiro de Macaíba e a equipe da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). No Cruzeiro, os treinos acontecem nas terças, quintas e sábados, já pela Universidade, ela treina terças e sextas. sobra apenas às segundas e quartas para os treinos de musculação, que fazem parte da preparação física da modalidade. Por causa das diversas atividades que Paulinha tem que desempenhar na semana, fica muito complicado se dedicar ao futebol como gostaria.

 Além disso, a própria Federação Norteriograndense de Futebol não cria um calendário fixo para o futebol feminino, diferente do masculino, que possui toda uma estrutura de competições marcadas com antecedência. “Muitas vezes, só iniciamos os preparativos quando as competições entram no calendário e são confirmadas, isso faz com que os times não consigam manter um ritmo anual de treinos. Enquanto os times masculinos possuem competições de bases, a categoria feminina tem apenas uma divisão”, acrescenta Paulinha. Como consequência, há uma redução drástica na quantidade de meninas nos times, o que prejudica a preparação para as competições. 

 “Nosso elenco foi reduzido, perdemos algumas atletas para outros times que jogam primeira e segundas divisões em outros estados, mas estamos preparadas, temos um bom time, somos ainda um dos favoritos ao título. Estamos nos preparando para sermos campeãs assim como fomos no ano passado”, afirma Paulinha, sobre o Campeonato Estadual de Futebol Feminino, que começa a partir do dia 19 de outubro. 

A estrutura do futebol feminino no estado também é alvo de críticas. Paulinha diz que é preciso fazer uma pressão em cima da federação estadual até pra definir um horário para os jogos. “Eles colocam os jogos em estádios sem as mínimas condições estruturais para acontecerem, além de horários que são desumanos para quem mora em um Estado tão quente. É um grande descaso com a modalidade”, critica..

 Segundo ela, o Cruzeiro de Macaíba, seu clube, sempre busca maneiras que melhorem o trabalho das atletas. Diante da falta de recursos da federação, dirigentes membros da comissão técnica e até as próprias atletas tiram do próprio bolso. Esse dinheiro ajuda principalmente as jogadoras que possuem menos condições. “Ajuda para comprar chuteira e na passagem de ônibus para as meninas chegarem nos treinos. Quando existe a necessidade de trazer jogadoras de outros lugares do país, eles tentam patrocínio, porém os salários variam entre 200 e 300 reais”, pontua. 

Foto: Acervo pessoal

Visibilidade e futuro

A visibilidade do futebol feminino vem crescendo a cada ano, especialmente após as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016 e após a Copa do Mundo da França em 2019, onde pela primeira vez na história, uma TV aberta transmitiu os jogos da seleção brasileira. Com isso, Paulinha acredita que o futebol feminino no futuro seja levado mais a sério.

 “Nós atletas precisamos nos preparar da melhor forma possível para que possamos ter um bom desempenho, conseguir jogar 120 minutos e acréscimos”. No Brasil algumas atitudes estão sendo exigidas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), quando obrigou que todos os clubes participantes da série A do campeonato brasileiro, formassem times femininos, incentivando assim a participação de mais mulheres no futebol”, afirma.

Paulinha sempre sonhou em se tornar uma grande jogadora de futebol profissional, mas a péssima remuneração das jogadoras está fazendo ela acordar para a realidade. O futebol continua sendo a sua maior paixão, porém hoje a atividade está mais voltada para um hobby do que uma profissão. “Hoje não me vejo sobrevivendo do futebol. Faço porque gosto, levo de uma forma profissional, mas preciso de estágio. Futuramente precisarei trabalhar e tenho que encaixar o esporte na minha rotina”, desabafa.

 A atleta prefere não fazer planos para o futuro no futebol a longo prazo, até porque as circunstâncias que o futebol feminino passa não permitem. “Estamos focadas no estadual, não sabemos se próximo ano a equipe vai continuar”. Não existe preço para sonhar, mas ela estaria disposta a viver o seu por pelo menos um salário mínimo. “Meu sonho seria viver do futebol em uma equipe que pudesse me pagar. Se eu recebesse um salário mínimo, terminaria minha graduação e viveria disso”, conclui. 

 

Atualização: A matéria foi feita antes de começar o Campeonato Potiguar Feminino. Atualmente o estadual está na fase de semifinais, e o Cruzeiro de Macaíba tenta a classificação para disputar o título. 

 

Jornalista e Profissional de Educação Física. Pernambucana, bairrista por natureza, vivendo a máxima Gonzaguista: “Minha vida é andar por esse país”. Apaixonada por futebol desde que respira. Atualmente vive em São Paulo, e tem como sonho ajudar a conduzir o futebol feminino ao topo. Fora das quatro linhas, gosta de ler, pedalar, explorar a natureza e é obcecada pela ideia de estar sempre criando algo novo.
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