O debate sobre a importância da saúde mental tem ganhado mais destaque em diversos espaços da nossa sociedade, e no esporte, isso não tem sido diferente. Hoje, vários atletas se sentem mais à vontade para falar de seus medos, frustrações e outros problemas que muitas vezes cercam as suas rotinas de treinos e competições. O fator psicológico que antes era tratado como um tabu, agora é visto como uma parte essencial para o bom desempenho esportivo.
E esse trabalho parece ser uma realidade no futebol feminino brasileiro. De acordo com um levantamento feito pela reportagem do Fut das Minas, dos 16 clubes que disputam a Série A1 do Brasileirão Feminino, 12 desenvolvem um acompanhamento psicológico com as jogadoras. Apenas o Avaí/Kindermann não conta com um profissional da psicologia para o time feminino. Já Internacional, Athletico-PR e Real Ariquemes não deram retorno à nossa reportagem até o fechamento desta matéria.
Confira abaixo o levantamento completo:
Contam com um(a) profissional exclusivo(a) para o time feminino: Corinthians, Ferroviária, Palmeiras, Santos, Flamengo, Grêmio, Cruzeiro e Bahia
Não contam com um(a) profissional exclusivo(a) para o time feminino, é feito um acompanhamento de acordo com a demanda das atletas: São Paulo, Atlético-MG, Ceará e Real Brasília
Não contam com nenhum acompanhamento psicológico: Avaí/Kindermann
***Internacional, Athlético-PR e Real Ariquemes não responderam
Segundo Amanda Ciaramicoli, psicanalista e nutricionista que atua como treinadora mental de atletas, ter alguém que trabalhe em relação a causas emocionais das jogadoras faz toda a diferença. “Um profissional exclusivo consegue acompanhar a rotina das atletas, os treinos, os momentos de descontração e todos eles dizem muito sobre as atletas. O profissional que consegue captar isso consegue ter mais assertividade nas intervenções e nas propostas de trabalho, além de propor treinos mentais – o ideal é que se treine a mente como se treina a parte física”, destaca.
Mesmo com a parte psicológica dos atletas em geral sendo tratada com mais atenção, a saúde mental ainda é vista como um tabu, especialmente, no futebol. Amanda Ciaramicoli ressalta que a desinformação sobre a relação da mente com o desempenho técnico e físico, é um dos fatores para isso. “As pessoas e os clubes, de uma forma geral, ainda entendem que trabalho emocional está relacionado somente a parte motivacional ou de autoconfiança. Muitos ainda não sabem do impacto que o emocional tem até mesmo em lesão, recuperação de lesão, parte hormonal, ganho de força e etc”, explica a especialista.
Caso do Ceará e a responsabilidade de clubes e entidades
Depois de fazer história no futebol feminino nacional, ao conquistar o título da Série A2 do Brasileirão Feminino em 2022, o Ceará chegou neste ano para disputar a primeira divisão em um cenário completamente diferente. Por conta do rebaixamento da equipe principal masculina para a Série B do Brasileirão, o time feminino do Vozão sofreu cortes e a base campeã foi totalmente desfigurada. Com isso, meninas das categorias de base foram promovidas para a equipe principal. E claro, o resultado desse descaso dos dirigentes do Ceará com a modalidade trouxe resultados vexatórios.
No primeiro jogo da temporada, pela Supercopa Feminina, as Meninas do Vozão foram goleadas por 10 a 0 pelo Flamengo. Na estreia da equipe cearense na Série A1 do Brasileirão Feminino diante do Corinthians, outra derrota com o placar elástico, 14 a 0. Após o jogo contra o time alvinegro, a goleira do Ceará saiu de campo chorando e chegou a ser consolada pelas jogadoras do time paulista.
As constantes goleadas sofridas pelas Meninas do Vozão e o descaso dos dirigentes com a situação do time, chamaram a atenção de como as jogadoras estavam lidando psicologicamente com tudo isso. Ao ser questionado sobre o desempenho e os resultados da equipe, o diretor administrativo do Ceará, Eduardo Arruda, afirmou que as atletas estavam felizes em jogar no Vovô, uma percepção bem diferente do que as jogadoras demonstraram em campo. Confira abaixo a declaração do dirigente:
Para a treinadora mental, Amanda Ciaramicoli, nesses casos, é preciso preparar emocionalmente as atletas para diferentes situações. “Quando falamos em trabalho emocional é exatamente sobre entender que um atleta é construído pelas suas atitudes e contexto em diversos cenários, dentro e fora de campo, sejam estes cenários bons ou ruins. Os atletas também deveriam ser preparados mentalmente da mesma forma que os treinos físicos são feitos com a intenção de capacitar para os mais diversos tipos de adversários e situações”, explica a especialista.
A coragem e a vitória de Bianca Gomes
No ano passado, a atual atacante do Santos, Bianca Gomes, passou por um momento muito desafiador fora de campo. Quando ainda atuava pelo Corinthians, a jogadora ficou afastada do time por quase dois meses. Na época, o clube não revelou o motivo do afastamento. Então, depois de 45 dias, Bianca Gomes retornou. Em um depoimento emocionante, ela revelou que estava enfrentando um quadro de depressão e que tinha se recuperado.
De certa forma, a coragem da atacante em falar publicamente sobre esse momento de sua vida, surpreendeu. Mas a história dela serviu como um exemplo não só de superação, mas de como é importante o apoio do clube nessa situação. Bianca Gomes relatou que foi difícil aceitar que ela estava com depressão. E foi a partir de uma conversa com a psicóloga do Corinthians que ela pediu ajuda. Durante todo o processo de tratamento, a jogadora contou com o apoio da família, amigos, companheiras de clube, técnico e diretoria do clube.
O caso de Bianca Gomes pode ser muito mais comum do que pensamos no meio futebolístico. Amanda Ciaramicoli reforça o quão é fundamental que os clubes deem mais atenção à parte emocional das atletas. “Acredito que o futebol de uma forma geral precisa dar mais atenção às questões emocionais. Por muito tempo se pensou que isso era só para o atleta saber lidar com suas emoções e hoje já sabemos o impacto que o trabalho tem até mesmo nas questões físicas. Eu acredito que esse trabalho deveria estar presente desde a formação do atleta, pois muitas vezes a emoção nos traz sintomas somente alguns anos depois e é importante saber lidar com a pressão e com as emoções desde sempre”, destaca a especialista.
Aumento da visibilidade e pressão das redes sociais
Já é um fato que o futebol feminino tem tido cada vez mais visibilidade. Mais pessoas estão acompanhando a modalidade pela TV, internet e nos estádios. E por questões históricas e estruturais, diferente do futebol masculino, as jogadoras têm uma relação mais próxima da torcida e com os fãs do esporte.
Ao mesmo tempo que isso pode ser um ponto positivo, essa proximidade e aumento da visibilidade pode trazer alguns pontos negativos para as jogadoras. “Quando as atletas estão emocionalmente fortes, a visibilidade midiática e o aumento da torcida em geral são pontos de estímulo e incentivo, o entusiasmo da torcida pode elevar a confiança, a vontade e a alegria das atletas e com isso fazer com que o resultado individual e coletivo sejam positivos. Quando a atleta está emocionalmente mais frágil, esse aumento de visibilidade pode causar um efeito negativo e a atleta se sentir mais cobrada e pressionada até mesmo pela cobrança mais excessiva de alguns torcedores(…)”, como explica a treinadora mental.
No ambiente das redes sociais, a relação entre atleta e torcedor é muito mais intensificada pela proximidade e interação que são proporcionadas. E muitas vezes as redes sociais podem se tornar um fator tóxico, especialmente, pela exposição e críticas negativas. Amanda Ciaramicoli destaca que em situações como essa, cada jogadora encontra um jeito de lidar com isso. “Enquanto algumas gostam de acompanhar tudo o que circula na rede e utilizam isso como um fator motivador, há aquelas que preferem se isolar e não ter acesso a nenhuma informação para conseguir se concentrar 100% na sua atuação, principalmente em momentos decisivos”, destaca.
Para a especialista, a melhor forma de lidar com essas situações é saber resguardar a parte mental. “Na minha opinião, a melhor alternativa é blindar a mente para que esses fatores não tenham impactos negativos, pois não é possível se isolar das informações a todo momento. O principal é ter consciência da sua evolução e do seu potencial independente das opiniões”, explica Amanda Ciaramicoli.
