‘Confiamos no Santos, mas o clube nos traiu’: jogadoras expõem revolta após retorno de técnico denunciado por assédio

Arquibancada da Vila Belmiro | Guilherme Greghi

Reportagem: Amanda Porfirio
Apuração e Colaboração:
Bianca Anacleto, Janayna Moradillo e Sharon Prais

Na última terça-feira (9), o Santos anunciou em uma coletiva de apresentação o retorno do técnico Kleiton Lima ao comando das Sereias da Vila. O treinador saiu do clube em setembro de 2023, após 19 jogadoras o denunciarem por assédio sexual e moral através de cartas anônimas. 

O retorno do técnico causou revolta entre atletas e ex-atletas do Santos, que criticaram a postura do clube, em especial a fala da coordenadora de futebol feminino, Thaís Picarte, que declarou ter procurado as jogadoras para apurar as denúncias. 

Após a declaração de Thaís Picarte, várias atletas se manifestaram nas redes sociais emitindo a mesma mensagem ‘não fui procurada’. De forma exclusiva, entrevistamos ex-jogadora do Santos, que preferiu não se identificar. Para ela, a postura da coordenadora foi decepcionante: “Ter que ouvir de uma mulher, que foi atleta, que eram mentiras frágeis? Acho que é pior. Eu entenderia o papel dela se ela falasse que foi uma decisão do Santos trazê-lo de volta, o que ‘passou, passou’, está na justiça e lá será resolvido […] Agora, ela colocar a cara para falar isso sem nem ouvir o outro lado da história […] Toda admiração que eu tinha por ela caiu por terra”, declarou.

Outra ex-jogadora do Santos, em contato com nossa reportagem, também negou que tivesse sido procurada pelo clube: “É revoltante! Em nenhum momento fui procurada, e em conversa com outras jogadoras, elas também falaram que não foram. Ela não pode fazer essas apurações sobre um caso que foi encerrado enquanto ela não estava no clube”, criticou. 

O movimento das jogadoras nas redes sociais também chegou nas páginas de torcida, que classificaram o episódio como ‘papelão’. 

Com a grande repercussão após a versão apresentada pelo Santos na coletiva da apresentação do técnico, nossa reportagem buscou ouvir atletas, clube e todos os personagens envolvidos na história, reunindo detalhes, desde às denúncias até os últimos desdobramentos, para trazer um entendimento mais amplo do caso Kleiton Lima.

Movimento das denúncias 

No dia 7 de setembro de 2023, o Santos tinha sido recém-eliminado da série A1 do Brasileirão feminino, quando a reportagem do Globo Esporte revelou a denúncia de assédio sexual e moral por 19 jogadoras, contra Kleiton Lima, então técnico do clube.

De acordo com uma das atletas entrevistadas, o movimento de denúncias surgiu após alguns relatos passarem pela psicóloga que, seguindo o protocolo do clube, orientou que elas procurassem a ouvidoria interna. “Em nenhum momento nos orientaram a fazer o boletim de ocorrência. A gente compartilhava essas coisas individualmente com a nossa psicóloga e é uma coisa que a gente só percebe quando alguém fala que também passou pela mesma coisa. Aí a gente liga uma coisa na outra e percebe que aquilo não é normal”, explicou.

Após a série de denúncias enviadas à ouvidoria e, consequentemente, a publicação da reportagem que expôs as denúncias à imprensa, o Santos teria reunido todas as jogadoras, a comissão técnica e representantes da coordenação de futebol do clube, entre eles, Alexandre Gallo, para uma reunião aberta, onde trataram do caso.

A única reunião que foi feita, foi mais para dar nome aos bois, parece que queriam ligar as cartas às atletas. Muitas meninas ali relataram o que tinham passado. Nessa reunião estava todo mundo, até quem não escreveu, quem concordava com a permanência dele […] Muitas meninas falaram, teve uma que chorou na reunião falando sobre o assédio moral que tinha sofrido e que ele (Kleiton) falou coisas absurdas. Muitas outras também choraram.” 

Disse ex-atleta do Santos

Pouco tempo após a reunião, o clube decidiu afastar o Kleiton Lima e, segundo a jogadora, não tomou mais nenhuma outra providência. “Ninguém foi procurada, eu não fui procurada nem quando estava dentro do clube. As capitãs, as jogadoras mais ‘pesadas’, não foram chamadas para conversar. Nós falamos umas com as outras, então a  gente sabe”, afirmou. 

Com o silêncio do clube nos bastidores e com o fim de temporada se aproximando, o temor de  muitas atletas envolvidas no caso das denúncias, de terem seu vínculo encerrado, acabou se concretizando. 

Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

O Santos rescindiu com mais de 10 jogadoras e praticamente renovou a equipe para 2024. “Só permaneceram no clube as atletas que não podiam ser mandadas embora porque estavam em contrato, as que estavam machucadas e atletas que sabiam que podiam manipular. Tanto é que foi isso o que aconteceu lá dentro, teve atleta que foi ameaçada de ser mandada embora caso não concordasse com tudo que tava acontecendo”, disse uma das ex-jogadoras.

Reação de Kleiton Lima

Enquanto boa parte do elenco era desfeito, já no início de 2024, o técnico Kleiton Lima decidiu denunciar uma das atletas que supostamente teria escrito uma das cartas, por calúnia e difamação. 

Técnico Kleiton Lima sob o comando das Sereias da Vila em 2023 | Pedro Ernesto Guerra Azevedo/Santos FC

Segundo nota da defesa de Kleiton ao portal Terra, a jogadora denunciada teria organizado uma “conspiração arquitetada por meio de cartas apócrifas”, com o objetivo de derrubar o técnico do cargo. 

A acusação de Kleiton, de que teria sido vítima de uma espécie de “motim” das jogadoras, foi reafirmada por ele, na recente coletiva de apresentação, e revoltou as atletas envolvidas no caso. “É bizarro, o clube olhar para você achar que você armou contra um treinador. Existem muitas formas de derrubar um treinador sem ter que inventar um crime. O que a gente ganharia inventando uma história dessa? No meu caso, eu só perdi […] Eu fui para o Santos justamente para ter uma carreira longa lá e conseguir me formar. Então perdi muita coisa”, lamenta.

Medo e sentimento de traição

Ao contrário de Kleiton Lima, nenhuma das autoras da denúncia procurou a polícia para abrir um boletim de ocorrência. O motivo, segundo uma das entrevistadas, é o medo. “Nosso medo era tomar uma represália, tomar um processo, como aconteceu com uma das meninas. Porque é palavra contra palavra, não tem o que fazer, não temos prova, não temos filmagem”, revelou.

Nesse ponto, as atletas não são exceção. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, 73% das mulheres deixam de denunciar assédio por medo e 31% têm vergonha da exposição dos fatos. 

Outro fator que afasta mulheres da denúncia é a dificuldade de comprovação do crime. Uma cartilha divulgada pela Controladoria Geral da União (CGU), sobre o tema, diz que: “O assédio sexual é uma infração de difícil comprovação, pois, não raro, envolve pessoas em condição de vulnerabilidade e apenas o relato da vítima.”

Para uma das atletas entrevistadas, o sentimento dela e de outras companheiras é de foram traídas pelo clube.

“Desde o princípio, nossa impressão era de que o Santos sempre quis defender e limpar a imagem do Kleiton. Em nenhum momento o Santos se preocupou em proteger as atletas […] Confiamos no Santos, mas o clube nos traiu.”

Segundo a Advogada Thaís Bandeira, especialista em casos de violência contra à mulher, a postura do clube, relatada pelas atletas, vai de contra ao que é orientado a fazer nesses casos. 

O clube não tem o papel de dissuadir as vítimas de procurar a justiça, ao contrário, deveria apoiar e até mesmo incentivar a postura, colocando-se à disposição para qualquer esclarecimento. Quando uma instituição é procurada por alguém que se identifica como vítima de um crime, a postura adequada é fazer uma apuração mínima do que se está denunciando. Mas também será necessário levar os fatos ao conhecimento das autoridades públicas – Ministério Público e/ou delegacia”, explicou. 

“Mancha desnecessária”

Em meio a fala da coordenadora de futebol feminino, Thaís Picarte, na coletiva de apresentação do técnico Kleiton Lima, a gestora classificou o episódio das denúncias das jogadoras como “mancha desnecessária para a história do Santos”. 

O termo utilizado revoltou torcedores e mais ainda as atletas envolvidas. Questionada sobre o que pensou quando assistiu ao vídeo, uma delas respondeu. A maior mancha da história do Santos estão sendo todos os comportamentos que o Santos tem tido, como aceitar um estuprador num churrasco, teve um membro da comissão que falou absurdos racistas e saiu até áudio, contratar atleta que bate em mulher… Acho que a maior mancha na história do Santos não é só o caso do Kleiton Lima, é o comportamento e as atitudes que o Santos tem tido perante toda a sociedade”, finalizou.

O que dizem os citados

Procurado pela reportagem, o Santos Futebol Clube disse que tudo havia sido respondido na coletiva de apresentação do técnico Kleiton Lima, disponível no YouTube. Questionados sobre como foi feita a investigação e apuração das denúncias, e se tinham procurado as atletas para serem ouvidas, o clube não deu retorno.

A reportagem também procurou o técnico Kleiton Lima e a coordenadora de futebol feminino, Thaís Picarte. Ambos alegaram que não estavam autorizados a falar e encaminharam o contato para a assessoria de imprensa do clube. 

Já a Polícia Civil, citada pelo Santos e pelo técnico Kleiton Lima, como órgão que deu suporte às apurações das denúncias, respondeu aos questionamentos da nossa reportagem, através de nota. 

A polícia cita uma investigação que se refere a denúncia feita pelo o técnico Kleiton Lima contra uma das jogadoras do clube. Veja a nota na íntegra.

“A Polícia Civil informa que o caso citado foi investigado por meio de inquérito policial instaurado pelo 2º Distrito Policial de Santos e encaminhado ao Poder Judiciário em janeiro deste ano, tendo retornado com um pedido de redistribuição do processo ao Juizado Especial Criminal (Jecrim).”

O processo segue em segredo de justiça. A polícia não esclareceu se fez algum tipo de acompanhamento ou apuração junto ao Santos em relação às denúncias das atletas.

Em nome das meninas do futuro

Ao ser questionada sobre o desgaste de toda a história, o desfecho lastimável e o sentimento de traição e revolta que ficou, uma das atletas que concedeu entrevista diz que está de consciência tranquila e pediu para deixar uma reflexão. Segue na íntegra. 


Nós fizemos isso, e eu particularmente continuo fazendo, para que se eu tiver uma filha e ela quiser ser jogadora, ela possa estar num ambiente saudável. Olhando para tudo o que foi falado, queria que as pessoas se perguntassem se gostariam que sua filha frequentasse um ambiente de trabalho desse. Se o professor da escola da minha filha se vestisse daquela maneira, usasse aquele tipo de palavras, tocasse e chamasse a gente de forma desrespeitosa […] É um ambiente adequado? Eu não gostaria e acredito que ninguém gostaria. Então eu questiono: por que no meio do futebol a gente tem que aceitar esse tipo de coisa que em outro lugar não seria aceito? E também por que o peso de 19 palavras pode ser menor do que o de uma? Por que o peso da palavra do homem é sempre maior do que o da mulher? Gostaria de trazer essas reflexões para que essa matéria seja atemporal, não seja só sobre o Kleiton Lima, que daqui a dez anos as pessoas vejam e falem que faz sentido para elas enquanto sociedade.

Jornalista e Profissional de Educação Física. Pernambucana, bairrista por natureza, vivendo a máxima Gonzaguista: “Minha vida é andar por esse país”. Apaixonada por futebol desde que respira. Atualmente vive em São Paulo, e tem como sonho ajudar a conduzir o futebol feminino ao topo. Fora das quatro linhas, gosta de ler, pedalar, explorar a natureza e é obcecada pela ideia de estar sempre criando algo novo.
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