“O Cruzeiro, dos 36 clubes, é o mais pobre financeiramente falando. Bem mais pobre”, diz presidente do clube
Por Júlia Carvalho
Graça, de 32 anos, é autora do primeiro gol do Cruzeiro de Macaíba, único representante do Rio Grande do Norte na Série A2, no Campeonato Brasileiro de futebol feminino. Mas, em meio à pandemia, ela dribla outros adversários: moradora de São Gonçalo do Amarante, Região Metropolitana de Natal, a jogadora que vive com a mãe e dois filhos foi dispensada do trabalho extra-campo e teve negado o auxílio financeiro oferecido pelo Governo Federal. Ao saber da ajuda da Confederação Brasileira de Futebol aos clubes, esperava auxílio do Cruzeiro:
“Não recebi uma prata do dinheiro que veio da CBF. Só não estou passando fome porque as meninas do time se organizaram e vieram me dar ajuda. Elas sabem!”, disse.
Em abril, a CBF enviou uma ajuda de R$ 50 mil aos 36 clubes de futebol feminino que disputam a Série A2 do Campeonato Brasileiro, em colaboração às equipes que sofrem com a perda de receita durante a paralisação do futebol. No Cruzeiro de Macaíba, as atletas sentiram falta de esclarecimento sobre o uso dos recursos.
“Não sei o que foi feito com o dinheiro”, disse uma das jogadoras, que preferiu não se identificar.
Embora o time seja considerado profissional por estar federalizado junto à Federação Norte-Rio-Grandense de Futebol, sua estrutura é amadora. Até 2019, as atletas jogavam de forma voluntária sem sequer receber salários. Isto, pois, a receita do time era baixa, chegando a R$ 2,3 mil por mês. Neste ano, consolidadas na Série A2 e com mudança na direção, o Cruzeiro acordou com as atletas que pagaria, de forma pioneira, um salário às jogadoras, por cada fase disputada na competição. O salário varia entre as 22 atletas, de modo que o valor oscila entre R$ 400 (a maioria) e R$ 2500 (profissionais), segundo o presidente do clube, Odilon Benício.
De acordo com as jogadoras, o pagamento prometido pelos dirigentes foi feito mesmo com a interrupção do campeonato ainda no início da primeira fase. A questão levantada é que o pagamento foi feito pelo clube antes da CBF encaminhar qualquer auxílio aos times femininos, ou seja, após o envio financeiro da confederação ao clube, nenhuma outra ajuda foi encaminhada.
“Falaram que como o clube não tem uma folha salarial, não teria obrigação de repassar dinheiro para as atletas. Então me foi dado os R$ 400, referente ao mês que participamos do Brasileiro. Isso foi de um acordo anterior ao auxílio do governo”, disse outra jogadora, sob condição de anonimato.
Segundo o Diretor de Planejamento do Cruzeiro de Macaíba e técnico de futsal masculino do clube, Sócrates Garcia, parte da verba enviada pela confederação foi responsável por cobrir o custo do acordo feito entre atletas e clube. Conforme o diretor, o dinheiro foi necessário também para situações correlatas, já que perderam, para 2020, todos os patrocinadores. Além disso, o time não consegue garantir a renda que tinha através do aluguel de seu campo, em razão da pandemia, e perde, por causa da paralisação do futebol, o auxílio que recebia por disputa no brasileirão, que corresponde a R$ 10 mil para os jogos em Natal e R$ 5 mil quando joga fora de casa. Juntas, as perdas chegam a R$ 30 mil.
“O Cruzeiro ia quitar as pendências dele e não era mais uma pendência o pagamento às meninas, porque ele já tinha feito isso”, disse Sócrates. “A gente tem responsabilidade com a prestação de contas de tudo o que é gasto, tanto com o futebol feminino quanto com outras despesas do clube”, continuou.
Sócrates também informou que parte do dinheiro foi usado para quitar uma dívida trabalhista deixada pela gestão anterior. Conforme o diretor, o restante do dinheiro está na caixa do clube, para que tenham condições de se manter até o final do ano caso a rotina comum não retorne. Perguntado sobre quais eram e quanto totalizavam as dívidas trabalhistas do Cruzeiro, Sócrates não quis responder. Limitou-se a dizer que foram todas pagas e o uso do dinheiro doado pela CBF foi esclarecido ao Conselho deliberativo e fiscal do clube.
Em pesquisa no Tribunal Regional do Trabalho (TRT-21), a reportagem não encontrou qualquer ação trabalhista do Cruzeiro, nem em tramitação, nem arquivada. O presidente do clube, Odilon Benício, esclareceu que era uma única dívida, deixada pela gestão passada, referente ao salário de um zelador e tratada extrajudicialmente. O presidente também disse que parte do dinheiro foi usado para pagar o salário de sete profissionais da comissão técnica: treinador, um auxiliar, uma coordenadora, um preparador físico, um preparador de goleiro, um roupeiro e um fisioterapeuta. Além disso, com três jogadoras dispensadas, o clube arcou com as despesas de retorno das atletas aos seus estados de origem.
“A destinação do dinheiro da CBF também era para isso, entre outras despesas. Não era só para atletas. A gente pagou o que devia. A gente tinha um contrato com as meninas, como te falei, de fases, e nós quitamos tudo isso, nós não devemos um centavo”, disse Odilon. “Alguns clubes, inclusive, já tomei conhecimento de matéria nacional, que sequer pagaram as atletas. Não é o caso do Cruzeiro.”
Segundo o presidente Odilon, embora, com exceção de uma por ter carteira assinada, todas possam ter direito ao benefício do auxílio federal em razão do vínculo com um clube ligado à CBF, perguntou à coordenadora de futebol sobre a situação de aprovação das meninas e disse não ter obtido resposta.
Auxílio é para manutenção do futebol feminino
À reportagem, a assessoria do departamento feminino da CBF esclareceu que: “o dinheiro foi repassado para cumprir os compromissos com a modalidade. Salário, aluguel da casa das atletas, pagamento de pessoas envolvidas no futebol feminino, alimentação.”
O diretor, no entanto, tem outra interpretação:
“O auxílio é pra socorrer a perda de receita das equipes. Se fosse dinheiro pra ratiar pra atleta, ele depositava na conta das atletas. O dinheiro é para as pendências do clube, entre elas, folha salarial, se houver pendência nesse sentido”, disse. Perguntado se era pra uso apenas com a equipe feminina, ele disse: “Não, pro clube.”
Já o presidente, diverge do uso do valor no time masculino: “O masculino, zero.”
Entenda o repasse
Em razão da pandemia do novo coronavírus, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) doou R$ 19 milhões a um grupo de clubes que representa a base da pirâmide do futebol em competições nacionais. Cada um dos 68 clubes que disputa a Série D do campeonato brasileiro recebeu R$ 120 mil, enquanto cada um dos 20 clubes da Série C recebeu R$ 200 mil. No campeonato brasileiro feminino, o auxílio dado foi de R$ 120 mil a cada um dos 16 clubes da Série A1, além de R$ 50 mil a cada um dos 36 clubes da Série A2, caso do Cruzeiro de Macaíba.
Além disso, cada federação estadual recebeu R$ 120 mil.
Nota da CBF aos clubes
Segundo o presidente do clube, o dinheiro recebido foi usado dentro da destinação proposta pela CBF, com pagamento de salários e despesas correlatas. Além disso, por meio de nota enviada aos clubes, a Confederação deixou claro as possíveis destinações do recurso.
Trecho do Comunicado
Lembrando também que o auxílio se refere ao suporte às meninas, comissão técnica, quadro de apoio à até medicamentos e alimentação. Cada clube dentro das suas peculiaridades e acordo estabelecido. (Despesas correlatas).
O Cruzeiro de Macaíba venceu o primeiro jogo do Campeonato Brasileiro A2. A partida foi disputada fora de casa, contra o Sport, com as potiguares vencendo de virada por 3×2. O Celeste faz parte do grupo C da competição, que além do Sport-PE, tem Bahia, UDA-AL, Náutico-PE e Auto Esporte-PB.