Clube-empresa no futebol feminino: benefício ou prejuízo?

Projeto propõe melhorar a organização administrativa e financeira dos clubes, buscar maiores investimentos e prevê incentivos e profissionalização ao futebol feminino. 

Por: Camila Pinheiro 

Apenas em 1979, após quase 40 anos de proibição, foi permitido às mulheres brasileiras praticarem futebol. E somente quatro décadas depois, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) deu um passo considerado relevante no incentivo ao futebol feminino: desde o ano passado, todos os clubes que compõem a série A masculina do Campeonato Brasileiro, foram obrigados a manter uma equipe feminina adulta e outra de base, disputando ao menos um campeonato oficial. A exigência só ocorreu porque em 2017, a Confederação Sul-Americana de Futebol (CONMEBOL), decretou o impedimento na participação na Libertadores a partir de 2019, caso os times não implementassem equipes femininas profissionais. Decisões surpreendentemente tardias, quando consideradas as reivindicações de jogadoras profissionais ou que tentam se profissionalizar no futebol. 

As demandas das jogadoras são muitas, e algumas dessas exigências são constantemente expostas nos meios de comunicação ou transmissões de jogos. Quem não lembra do emocionante discurso da rainha Marta após a eliminação do Brasil na Copa do Mundo do ano passado? As atletas reivindicam estrutura para treinar, alimentação, transporte, melhores salários (que muitas recebem em atraso ou o valor parcial do acordado), reconhecimento na profissão, o fim do preconceito, maiores investimentos, e acima de tudo, respeito. A falta de profissionalização é um dos empecilhos ao sustento somente pelo futebol. 

Em paralelo às reivindicações há o Projeto de Lei (PL nº 68/17) que foi aprovado na Câmara dos Deputados em 27 de novembro de 2019 e seguiu para o Senado, projeto este que cria incentivos para os clubes se transformarem em empresas. A proposta sofre resistências de muitos times, principalmente os que fazem parte da Série A do Campeonato Brasileiro masculino. O principal ponto que provoca o receio é o maior recolhimento de impostos, já que muitas das associações possuem dívidas consideradas astronômicas e graves problemas de gestão. Outro argumento é o fracasso de alguns clubes que adotaram tal modelo, sendo o mais notável o caso do Figueirense. 

E quanto ao futebol feminino? Há incentivos e benefícios para a modalidade? Apesar da polêmica e eventuais resistências sofridas pelo projeto, há previsões para as mulheres nesse esporte. O PL prevê tributação especial, denominada Simples-Fut para os clubes que profissionalizarem suas gestões. A nova taxa obriga o recolhimento de 5% da receita bruta para saldar o Imposto de Renda, a Contribuição Social para Lucro Líquido (CSLL) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Confins). O valor da tributação de 5% poderá ser reduzido em 1% caso haja incentivo à formação de categorias de base do futebol feminino e também ao esporte em comunidades carentes. Um progresso quando levantamentos apontam que os times pertencentes à elite do futebol investem menos de 1% de sua receita na modalidade. Há também previsão de cobrança de impostos sobre recursos captados por patrocínio, propaganda e direito de transmissão (art. 103, parágrafo 3º). 

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Foto: Pedro Ernesto Guerra – Santos

A disparidade de investimentos é grande quando confrontadas as receitas dos clubes da Série A. O Santos foi o que mais investiu no futebol feminino em 2019, sendo um valor de 3,9 milhões dos 379 arrecadados, o que corresponde à 1,02% do orçamento. O Flamengo, cujo time feminino é composto em parceria com a Marinha e sendo clube de maior arrecadação do país, investiu apenas 1 milhão dos 752 declarados, correspondendo a apenas 0,13% da receita, valor este igual ao salário mensal do principal atacante do time masculino, Gabriel Barbosa, o Gabigol. 

Outro ponto muito importante no projeto de lei é a regulação do trabalho do atleta profissional, dentre eles mulheres e menores (art. 84). Essa medida trará garantias jurídicas às atletas, amenizando as dificuldades enfrentadas, já que em muitos casos não há recebimento de seus vencimentos ou, quando recebem, são os valores parciais, inferiores ao inicialmente acordado, situação recorrente principalmente em clubes de menor expressão. Até o momento, apenas 15 equipes que disputavam o Campeonato Brasileiro Feminino nas Séries A1 e A2 tinham registro profissional (total ou parcial) de suas jogadoras, sendo 10 na primeira divisão (Ferroviária, Internacional, Iranduba, Santos, Vitória, Flamengo, Corinthians, Cruzeiro, Grêmio e São Paulo.) e outros 5 na segunda (América-MG, Atlético-MG, Ceará, Fortaleza e Tiradentes-PI). Algumas equipes, como o Flamengo, funcionam em parceria com outras instituições e não pagam salários à maioria das atletas. No caso do rubro-negro carioca, apenas seis jogadoras recebem pagamento pelo clube. Outros times de São Paulo trabalham com bolsa-auxílio das prefeituras. O Corinthians anunciou a profissionalização do time feminino em janeiro deste ano. 

Exemplo Europeu

Na Europa, em alguns países já existe a obrigatoriedade de os clubes passarem de associações sem fins lucrativos para sociedades Anônimas. Esse modelo é adotado em Federações como França, Espanha e Portugal. A França tem o caso de maior sucesso no futebol destinado às mulheres: o Lyon, que conquistou este ano seu 14º título consecutivo e já possui 6 Champions League, os últimos 4 em sequência entre 2015 e 2019. No clube são fornecidas às mulheres as mesmas condições de trabalho em relação aos homens, com exceção dos salários. Os elogios das atletas que por lá passam são unânimes. Na Espanha, foi anunciada a profissionalização da liga feminina de futebol apenas este ano, após greve das jogadoras. Os clubes de maior destaque são o Barcelona, exceção de associação sem fins lucrativos, e o Atlético de Madri, uma Sociedade Anônima, cujos donos adquiriram recentemente o Atlético San Luís, do México. 

Em Portugal, os clubes permanecem como associações, mas cria-se uma nova empresa, parte administrada pelo clube e parte por investidores. O modelo é conhecido como Sociedade Anônima Desportiva (SAD) e passou a funcionar em meados dos anos 90. O país possui um campeonato regular feminino de futebol desde 1993, porém a profissionalização ainda é apenas um desejo. Na Inglaterra, mesmo que essa adesão ao clube-empresa não seja generalizada, há regras para a compra de um clube, dentre elas a necessidade de a empresa possuir acionista que já tenha ocupado cargo de diretor de futebol anteriormente e não tenha decretado falência. Somam-se 25 instituições de propriedade estrangeira no futebol inglês. A Federação Inglesa, em 2017, decidiu reestruturar as licenças para a temporada 2018/19 da Superliga Feminina, e uma das exigências era o profissionalismo, por meio de contratos de, no mínimo, 16 horas por semana, subindo para 20 na temporada 2020/21. Além disso, um valor mínimo de investimento para cada clube, Fair Play Financeiro e, obrigatoriamente, categorias de base. Suas ligas femininas estão entre as mais organizadas do mundo. 

USA – Fábrica de atletas

Nos Estados Unidos está o maior exemplo de organização e investimento. Lá, há um rígido controle sobre os gastos no esporte, pelo fato de que todos os clubes filiados à Major League Soccer (MLS) são seus sócios, ou seja, a falência de uma equipe pode prejudicar às demais. Os clubes precisam agir como empresas, e para isso, é necessário gerar receitas para depois utilizá-las. Medidas como um teto salarial para os atletas e grandes contratações sem valores astronômicos feitas com objetivo de gerar lucro com vendas de produtos e transmissões na TV, são regras para uma administração sustentável. Porém, ao contrário do que acontece no resto do planeta, o futebol feminino no país tem maior destaque em relação ao masculino. Isso se deve ao fato de que lá existe um sistema de bases muito forte, sempre vinculadas à educação, onde desde a infância, as meninas recebem incentivo para desenvolverem suas habilidades. O mesmo ocorre com os meninos em esportes como basquete e futebol americano. Investimentos da US Soccer, a confederação americana de futebol também é importante para o sucesso. Não há empenho semelhante em outras federações. Como consequência, sempre há atletas destaque nas equipes em todas as gerações. A primeira liga de futebol feminina do país foi criada em 2001, e hoje é realizada a National Women’s Soccer League (NWSL), que conta com apenas 9 times participantes, independentes das equipes masculinas, e funciona sob as mesmas formas de investimento da MLS. 

Chicago Red Stars v North Carolina Courage
North Caroline Courage – Campeão da NWSL 2019 – Foto:

As experiências vivenciadas ao redor do mundo demonstram que boa gestão organizacional e financeira, e responsabilidade com a modalidade, são fatores preponderantes para o sucesso de um clube, independente de ser uma associação sem fins lucrativos ou sociedade anônima ou limitada. No Brasil, o projeto do clube empresa pode agregar minimamente ao garantir profissionalização e salários às jogadoras, além da obrigatoriedade de maiores investimentos na modalidade. Benefícios que o país do futebol, atrasado em relação a outros de menor tradição no esporte,  não previu anteriormente em dispositivos legais como a Lei Zico e a Lei Pelé, ao contrário, constantemente surgem notícias de dirigentes, como o recente caso do Vitória-BA, que não demonstram vontade de investir, e por vezes até negligenciam o futebol feminino na equipe. Ainda em 2020 o machismo e o preconceito são o grande abismo na evolução da modalidade no Brasil, mas, ao menos agora, parte da sociedade reage e busca mudar um pouco da história. 

 

Foto de Capa: Rodrigo Corsi – FPF

Jornalista e Profissional de Educação Física. Pernambucana, bairrista por natureza, vivendo a máxima Gonzaguista: “Minha vida é andar por esse país”. Apaixonada por futebol desde que respira. Atualmente vive em São Paulo, e tem como sonho ajudar a conduzir o futebol feminino ao topo. Fora das quatro linhas, gosta de ler, pedalar, explorar a natureza e é obcecada pela ideia de estar sempre criando algo novo.
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