Historicamente, atletas e grande ídolos do futebol que cometem violência, são envoltos pela impunidade e cumplicidade
por Fabiana Sousa e Fernanda Gasel
A chegada do jogador Robinho, 36 anos, no Santos, trouxe a tona uma questão já antiga no futebol: as acusações de abusos e violência a mulheres envolvendo jogadores e o retorno deles aos gramados. Apesar de antiga, essa questão raramente é colocada em pauta e discutida entre clubes, dirigentes, torcida e confederação.
A imagem do futebol como um ambiente feito para homens vem sendo revista através de ações, como campanhas de conscientização, publicidades e a igualdade em premiações. No entanto, casos como o de Robinho e de outros grandes ídolos, exibem como esse mesmo ambiente ainda menospreza a mulher. Segundo a antropóloga, Mariana Mandelli, o futebol não é um ambiente receptivo para as mulheres. “No caso específico desse esporte (o futebol) a gente sabe que é um ambiente de masculinidades. É um ambiente de homens, voltado para homens. Então, dessa maneira, não existe uma mentalidade, uma cultura que abrace e receba a mulher nesses espaços”, explica.
Segundo levantamento exclusivo feito pelo GE, nos primeiros seis meses de 2020, 1.890 mulheres foram mortas de forma violenta no Brasil. O número de feminicídios, quando mulheres são mortas pelo simples fato de serem mulheres, também apresentou alta. Houveram 631 crimes de ódio motivados pela condição de gênero. O número de estupros chegou a 9.310, estes apenas os que foram denunciados, já que no país estima-se que apenas 35% dos estupros são revelados pelas vítimas. Além disso, o Brasil teve 119.546 casos de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica.
Os números apresentados na sociedade refletem os casos dentro do futebol, em entrevista, a cientista social Marianna Barcelos relatou, “O futebol tem uma característica muito específica que é a de exaltar uma determinada masculinidade. Então desde sempre o melhor jogador é o que tem a fama de ser pegador, e isso vai criando toda uma ideia de masculinidade. O que contribui bastante para o aumento da violência. Além de todos esses problemas estruturais da sociedade, violência de gênero e feminicídio”.
A volta de Robinho
Robinho assinou contrato com o Santos em 10 de outubro de 2020, dia Nacional da Luta Contra a Violência à Mulher. Em 23 de novembro de 2017, o jogador, ainda atuando pelo Atlético-MG, foi condenado na Itália a 9 anos de prisão por violência sexual. Segundo as informações da investigação, o crime ocorreu em 2013. De acordo com a Justiça italiana, Robinho e mais cinco amigos levaram a vítima a um camarim da boate Sio Café, em Milão, onde os abusos aconteceram. Na época, o jogador defendia o Milan.
Surpreendendo até o próprio jogador – como dito em entrevista dada ao UOL na última sexta-feira (16), a repercussão da chegada de Robinho no Brasil foi extremamente negativa. Apesar de comentários de desaprovação nas redes sociais, o retorno do jogador recebeu apoio de alguns atletas e diretoria do clube. Em entrevista coletiva após uma vitória sobre o Grêmio, na Vila Belmiro, questionado sobre a chegada de Robinho, o técnico Cuca respondeu, “Seja bem-vindo. Espero que nos ajude muito, dentro e fora de campo. Pessoa de caráter maravilhoso. Sem dúvida alguma vai nos ajudar”. O atacante Marinho ainda comemorou, na mesma partida, um de seus gols com algumas “pedaladas”.
Assim como o técnico do time, muitos torcedores também apoiaram o retorno do jogador. Esse apoio se tornou um problema e atingiu torcedores e jornalistas que se posicionaram contra a chegada de Robinho. Foi o caso da jornalista esportiva, Marília Ruiz. Ela teve seu número vazado e recebeu mais de 60 ameaças de morte por telefone. Segundo a jornalista, ficou claro que as ameaças e ofensas vieram essencialmente de torcedores santistas.
Ainda de acordo com Marília, o futebol como um todo diminui a mulher. “É um dos redutos mais machistas, misóginos e preconceituosos da nossa sociedade. Há quem acredite que a bolha do futebol tem que ser gerida por uma combinação da “ética” do boleiro e do conservador discurso machista”, opina. A jornalista criticou também o posicionamento do clube, “Eu acho repugnante quem tolera violência contra mulher, quem tolera racismo. Acho ainda pior quem propaga”, complementa.
O Santos só suspendeu o contrato do Robinho após o GE divulgar gravações exclusivas do caso na justiça italiana. A matéria contou com trechos da sentença judicial e da transcrição dos grampos que levaram o jogador a ser condenado em primeira instância na Itália. No depoimento, em uma das frases Robinho diz: “Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu.”
Levou pouco tempo para que essa declaração causasse indignação de milhares de pessoas nas redes sociais, e após a manifestação negativa de patrocinadores, o Santos suspendeu o contrato. Vale ressaltar que a suspensão do contrato não quer dizer que o jogador nunca irá jogar pelo time. O acordo entre o atacante e o clube ficará suspenso, pelo menos, até que se inicie na Corte de Apelo em Milão a análise do processo, em segunda instância, no dia 10 de dezembro. Se for considerado inocente, Robinho pode voltar ao Santos.
Outro caso de abuso sexual no futebol foi o do Cuca, atualmente técnico do Santos. Em 1987, ainda como jogador do Grêmio, Cuca, Eduardo, Fernando e Henrique foram presos acusados de estuprar uma menina de 13 anos, durante uma excursão do time na Europa.
Caso Cristiano Ronaldo
O jogador Cristiano Ronaldo, premiado com cinco bolas de ouro, foi acusado duas vezes por estuprar a modelo Kathryn Mayorga. O crime teria acontecido em junho de 2009. O processo foi aberto em setembro de 2018 com base em um documento em que o atacante teria feito um acordo para manter a modelo em silêncio. Mayorga saiu do anonimato dizendo que estava no banheiro se trocando para entrar no jacuzzi, quando Cristiano apareceu e ela se recusou a fazer sexo com ele.
Em 2019, a investigação foi suspensa devido a falta de provas. No entanto, o caso sofreu uma reviravolta após um juiz de Las Vegas se posicionar a favor de Mayorga. Quando o caso foi reaberto pela segunda vez, o jogador admitiu aos advogados que ela disse “não” e “pare” diversas vezes durante a relação sexual.
Mesmo com a declaração do jogador sobre a noite do incidente, ele continuou jogando, e é o segundo jogador de futebol com mais seguidores no instagram.
Caso Bruno
Ainda falando sobre crimes contra mulher, o Goleiro Bruno, enquanto ainda jogava Flamengo, foi condenado a 17 anos e 6 meses em regime fechado por homicídio triplamente qualificado, a outros 3 anos e 3 meses em regime aberto por sequestro e cárcere privado e ainda a mais 1 ano e 6 meses por ocultação de cadáver. Todos os crimes foram cometidos contra a sua ex-namorada, a modelo e atriz Eliza Samudio.
Segundo Bruno, o casal se conheceu em 2009 numa festa, e manteve relações sexuais com ela em um tipo de orgia, na casa de um outro jogador do Flamengo. Em agosto do mesmo ano, Bruno terminou o relacionamento após Eliza anunciar que estava grávida dele e se recusar a fazer o aborto, que teria sido proposto pelo atleta. Em 13 de outubro de 2009 a modelo prestou queixa à polícia dizendo que, na véspera, teria sido mantida em cárcere privado pelo goleiro e seus amigos “Russo” e “Macarrão”, e teria sido obrigada a tomar substâncias abortivas. A modelo fez um pedido de proteção que foi negado pela juíza Ana Paula Delduque Migueis Laviola de Freitas, argumentando que a moça estaria tentando punir o jogador.
O bebê nasceu em 10 de fevereiro de 2010, na cidade de São Paulo, Bruno recusou-se a reconhecer a paternidade. Em 04 de junho do mesmo ano, Elisa foi para o sítio do jogador em Esmeraldas, interior de Minas Gerais, a pedido dele. O desaparecimento da modelo ocorreu durante essa viagem. A investigação contra Bruno foi aberta em 2010, porém apenas 3 anos depois o goleiro foi condenado. Segundo o jogador ele não teve participação no crime e apenas pagou para que seus dois amigos fizessem.
Desde a sua sentença o goleiro tenta voltar aos gramados. Em algumas oportunidades chegou a atuar, enquanto em outras nem sequer entrou em campo. Neto Alencar, presidente do Rio Branco do Acre, atual time do goleiro, considerou o jogador como uma das maiores contratações da história do clube, e afirmou: “Se a Justiça que condenou foi a mesma que liberou você, a sociedade não pode impedi-lo de trabalhar”. Segundo Ruiz, falas como a do presidente escancaram a impunidade, “Acho que o futebol passa a péssima imagem de impunidade, que dá aos condenados a chance de passar a imagem de que seus crimes são menores; acho que o futebol não entendeu (estou dando aos péssimos dirigentes o benefício de só considerá-los ignorantes) a importância social que os jogadores exercem na nossa sociedade”, disse a jornalista.
Goleiro Jean
O caso do goleiro Jean, que atuava pelo São Paulo, também ganhou espaço nas redes sociais. No dia 18 de dezembro de 2019, Milena Bemfica, ex-mulher do jogador, publicou vídeos em seu stories onde acusou o goleiro Jean de agressão durante férias da família na Flórida, nos EUA. Foram oito socos no rosto, presenciados pelas filhas de três e cinco anos do casal. Ele foi preso e liberado um dia depois e está respondendo o processo em liberdade.
O São Paulo decidiu suspender o contrato do goleiro Jean até dezembro de 2020. O time não rescindiu o contrato do jogador para não ter que pagar os valores vigorados até 2022. Atualmente ele está emprestado ao Atlético-GO, time da série A, e segundo o próprio goleiro, ele não recebeu nenhuma reação contrária na torcida do novo clube.
Neymar, Mancini, Danilinho, Jobson, Dudu, Vampeta, Maradona, Juninho, Carlos Alberto, Garrincha, todos esses jogadores já estiveram envolvidos em casos de violência contra mulheres, alguns dos crimes foram comprovados, e todos seguem jogando futebol ou são ídolos de seus clubes.
Preconceito além das quatro linhas
Segundo a antropóloga, Mariana Mandeli, os diversos casos evidenciam um preconceito que vai além das quatro linhas, “A misoginia é comprovada dentro de campo a partir do momento que a gente vê que os atletas se comportam de maneiras deprimentes. Existem outros jogadores envolvidos em episódios de violência doméstica, isso não é nenhuma novidade, hoje a gente fala mais disso. Se a sociedade é machista o futebol vai ser machista, isso vai ser dentro e fora de campo”, afirma.
Do ponto de vista legal, não há nenhum impedimento no Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) de banimento do esporte por causa de condenação ou acusação criminal. Em entrevista para a revista Época, o ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e membro do Comitê de Ética da Fifa, Flávio Zveiter, afirma: “Se o juiz da execução penal autorizar, e o trabalho dele for jogar futebol, pode voltar a trabalhar.”
Misoginia
Mas além da condição legal, o retorno desses jogadores aos gramados pode diminuir uma luta que vem sendo travada há anos por mulheres em busca dos seus direitos. Frases como “Infelizmente existe esse movimento feminista”, dita por Robinho em entrevista ao UOL, só fortalecem ainda mais a ideia do desrespeito com as mulheres por todo universo que envolve o futebol.
Para Marianna Barcelos, a luta contra a misoginia ainda está longe de acabar, “ O dia que a gente realmente perceber que casos como esses se tornaram um impeditivo para esses jogadores atuarem, serem ídolos, aí a gente vai conseguir ver que existe realmente um avanço. O debate que se fez em torno do Robinho só escancara toda uma estrutura e um problema que não começa com o Santos, e que tem uma longa história”.