Por: Emília Sosa e Amanda Porfirio
“Estamos aqui vivendo porque temos família, mas é humilhante, humilhante mesmo. Infelizmente, esse é o futebol feminino”. Desabafo de uma atleta que não recebe nenhum pagamento há 11 meses.
Aparentemente 2019 havia sido um ótimo ano para o futebol feminino, os números não mentem. A Copa Do Mundo bateu recordes de telespectadores e, durante um mês, foi um dos assuntos mais falados no mundo. Mas essa não foi a realidade de todas. Desde o mês de agosto de 2019, o plantel inteiro de jogadoras do E.C. Vitória, um clube da elite do futebol brasileiro, estão sem receber salários e tiveram seus contratos oficiais de trabalho (CLT) cancelados. A data coincide com a entrada do novo presidente, Paulo Carneiro, na equipe baiana.
Ainda na campanha para a presidência do E.C. Vitória, Paulo nunca escondeu o desinteresse pela modalidade. Em uma entrevista para o canal Bar FC, no Youtube, antes de ser eleito, ele já afirmava que sendo eleito manteria o futebol feminino por ser obrigado por lei, além de prometer que tiraria o time feminino do Barradão: “A primeira coisa que eu vou fazer é tirar o futebol feminino de lá. Porque não é lugar… Ou joga futebol masculino, ou joga futebol feminino. Tem que ser em lugares diferentes”, declarou. Apesar desse tipo de discurso, Carneiro foi eleito com mais de 67% dos votos e tem mandato até 2022.
O ano de 2020 era visto como um marco de esperança para a modalidade, principalmente no Brasil, após a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) contratar uma técnica experiente e vitoriosa. Pia Sundhage chegou na seleção brasileira com um único objetivo, conquistar o ouro inédito nas Olimpíadas de Tóquio. Porém, a pandemia da Covid-19 jogou um verdadeiro balde água fria em todo o mundo. As Olimpíadas foram adiadas e campeonatos foram paralisados.
No Brasil não foi diferente. No dia 15 de março foram realizadas as últimas partidas da série A1 do Campeonato Brasileiro Feminino de 2020. Mais um momento de apreensão por parte das jogadoras do Vitória, que já estavam há nove meses sem receber nenhum tipo de pagamento por parte do clube. Antes disso, as atletas, que em sua maioria foram promovidas da categoria sub-17 ao profissional e moravam próximas ao Centro de Treinamento, precisavam pagar do seu próprio bolso as passagens do transporte para chegar nos treinos todos os dias. Esse dinheiro vinha muitas vezes dos bolsos de familiares que acreditam no sonho dessas jovens.
Já as atletas que moravam no apartamento alugado pelo clube, se não tivessem apoio de seus familiares, só podiam contar com as três refeições diárias que o clube oferecia no refeitório, porque não recebiam os seus salários. “Isso é mais pra pessoas que não trabalham, né? Que não tem nada. Mas pra gente atleta, comer três vezes por dia, se não tivesse dinheiro ficava com fome à noite, porque se você come às 17:30, quando é 20h você tá com fome, e cadê dinheiro pra comprar? Foi uma dificuldade tremenda, ter que esconder isso da família foi horrível” Revela uma das atletas que preferiu não se identificar.
Com a paralisação do campeonato, as jogadoras foram dispensadas e voltaram para as suas casas.
Além de ter de lidar com a falta de dinheiro para suprir necessidades básicas, como alimentação, houve episódios em que atletas foram impedidas de jantar no refeitório do clube após o treino, porque o presidente não havia autorizado. Mesmo com a intervenção e liberação da coordenação do setor de futebol feminino, superiores não autorizaram que naquele dia as atletas se alimentassem. “Uma cena em que eu fiquei arrasada, sem poder fazer nada. Me senti um lixo. Larguei a comida e fui embora. É muita coisa assim, que machuca, que é horrível. Não dá” relata uma das atletas que presenciou o ocorrido.
Entre os problemas com a alimentação e falta de pagamento para realizar o mínimo, como se deslocar até o Centro de Treinamento, ainda têm atletas que lidam com a falta de suporte médico, e esperam cirurgia desde agosto do ano passado. Os valores enviados pela CBF renovaram as esperanças das jogadoras. “Quando se falou desse dinheiro da CBF a gente pensou que as cirurgias seriam feitas.”, contou uma das atletas.
Auxílio gerou expectativas
Em abril, um mês após a paralisação do Campeonato, a CBF anunciou medidas de apoio financeiro aos clubes da série A1 e A2 do Campeonato Brasileiro Feminino. O E.C. Vitória recebeu o valor de 120.000 reais para o suporte estrutural e ajuda financeira para as atletas do futebol feminino do clube. Esse foi o momento de esperança das atletas que já passavam por diversas dificuldades mesmo antes deste momento de crise mundial. Mas, esse dinheiro nunca foi repassado às jogadoras.
Em maio, o movimento Frente Vitória Popular teve conhecimento desse fato e, através dos conselheiros que fazem parte da torcida, o grupo resolveu cobrar uma resolução à diretoria do Clube. De acordo com a coordenação do movimento, no dia 14 de maio foi enviado um requerimento pedindo explicações sobre o atraso dos pagamentos. Sem respostas, o mesmo requerimento foi reenviado no dia 20 de maio. Ainda sem obter o retorno e com o aumento da preocupação em relação à falta de pagamentos às jogadoras, a torcida resolveu lançar uma campanha chamada “Eu Apoio as Leoas”, para arrecadar doações em dinheiro e repassar ao time feminino.
A Campanha consistiu na venda de camisetas e tinha o objetivo de arrecadar R$ 30 mil reais até o dia 11 de julho. A conselheira do Clube e uma das organizadoras da campanha, Bete Dantas, disse que a expectativa era dar visibilidade à situação das atletas e estimular a solidariedade da torcida. “A gente pensou que precisava fazer com que o time feminino virasse tema de discussão. Então pensamos que a Campanha seria uma forma que a gente encontrou de transformar uma realidade de invisibilidade em tema de discussão do dia”.
Deu certo! A campanha teve a visibilidade pretendida nas redes sociais e gerou uma união dentro da torcida do Vitória, empenhada em ajudar o time feminino. O valor arrecadado foi de cerca de R$ 27 mil reais. Para Bete, apesar de não atingir o objetivo, o retorno foi positivo. “A gente não conseguiu arrecadar o valor em dinheiro que permita dar o que as meninas precisam e merecem, a gente sabia que não conseguiria, mas queríamos arrecadar a maior quantidade possível. Os R$ 27.946 reais arrecadados na Campanha serão divididos entre os custos das camisetas e doados diretamente às jogadoras”, explica.
Movimento incomodou Presidente
Em meio à mobilização dos torcedores para prestar auxílio às atletas, o presidente Paulo Carneiro deu diversas declarações negativas sobre o futebol feminino dentro do E.C. Vitória. Em entrevista à Rádio Sociedade, o presidente disse que. “O Vitória tem um problema muito mais grave do que esse, em nível operacional. Que é conseguir equacionar esse saco de problemas que nós herdamos e que ainda tenho que ouvir gente preocupada com o futebol feminino”, reclama.
Em relação aos R$120 mil reais recebidos pela CBF para o futebol feminino, na mesma entrevista, ele disse: “Eu quero dizer que os R$ 120 mil foram dados ao Vitória, sabe? E o presidente do Vitória faz com o dinheiro o que ele quiser e assume a responsabilidade pelos seus atos perante o conselho fiscal.” afirmou.
Além dessa entrevista, nossa reportagem obteve com exclusividade o acesso a áudios do presidente enviados em um grupo do WhatsApp, em que ele comenta sobre a Campanha realizada pela Frente Vitória Popular.
“Eu não tenho problema em ser procurado por grupo de torcedores. Até acho que soube do requerimento da Frente Popular, mas não participei (…) Até posso abrir, não sou rancoroso, mas que venha com proposta para o clube (…) Esse requerimento deve ter chegado ao clube, mas eu não participei. E nesse momento, o futebol feminino do Vitória não é prioridade, por isso transformamos todo mundo em bolsistas”.
As atletas menores de idade, promovidas ao profissional, deveriam receber do clube uma bolsa auxílio de 600 reais.
Sobre a campanha o presidente Paulo Carneiro disse:
“Podem fazer a Campanha, eu só não acredito nela. Se me der o dinheiro, vai pro futebol feminino, eu prometo.” Ainda completou que “Se entregarem o dinheiro às meninas, me avisem né, pra eu não precisar pagá-las”.
Com o cenário conturbado nos bastidores do clube, é difícil esconder o desânimo no elenco.“Agora está pra retornar pra lá, como se nada tivesse acontecido. Estão fazendo aula teórica. Normal, como se fossemos voltar, e estivesse todo mundo feliz e empenhado. Eu me sinto indignada, não só eu como outras atletas”, conta uma das jogadoras de forma anônima.
E enquanto o dinheiro do auxílio da CBF, que era exclusivo ao futebol feminino, não é repassado para o devido fim, algumas jogadoras procuram alternativas, trabalhando em mercados e lojas, para conseguir ajudar nas contas e despesas de casa. Essas mulheres lidam diariamente com o esmorecimento e a falta de expectativa em relação à modalidade. “Estamos aqui vivendo porque temos família, mas é humilhante, humilhante mesmo. Infelizmente, esse é o futebol feminino”.
O que diz o EC Vitória
Procurado pela reportagem, o E.C Vitória, através do Diretor Jurídico, Dilson Pereira, disse que o clube vive uma situação econômica complicada e está se organizando para estabilizar a situação e, após isso, fará o repasse ao feminino. “Com o retorno das competições, o Clube deverá ter geração de caixa e, com isso, teremos condições de pagar as obrigações que estão pendentes, dentre elas a do futebol feminino.”, garante.
Em relação à situação das jogadoras, Dilson explicou que o departamento de Futebol Feminino do clube tem acompanhado a situação, e relembra que as jogadoras não têm contrato profissional. Sobre as declarações em áudio do presidente Paulo Carneiro, ele disse: “A declaração do Presidente foi um desabafo devido ao uso político de oposicionistas com relação ao futebol feminino, a pouca sensibilidade (da oposição) decorrente da situação, da crise decorrente da Covid-19, da situação financeira do Clube.”
Dilson finalizou classificando a campanha realizada pela Frente Vitória Popular como um movimento político e oportunista. “A “vaquinha” é um instrumento político, não é de colaboração, tampouco um caminho adequado para solucionar a situação financeira do Clube. Esta será solucionada com a adaptação do novo momento, geração de novas receitas”.
O que diz a CBF
A CBF tinha dito anteriormente, como citado na matéria da Cíntia Barlem, no blog Dona do Campinho, que a entidade estaria acompanhando, através do comitê de ética, o cumprimento dos repasses às equipes de futebol feminino.
Entramos em contato com a Assessoria da CBF, que disse em primeiro momento não responder pelas ações dos clubes, e que essa é uma relação entre clube/atleta, e quaisquer dúvidas deveriam ser esclarecidas com o clube em questão.
Porém, ao questionarmos sobre o interesse da entidade em garantir que o dinheiro do repasse teria o fim ao que foi pretendido, a Assessoria respondeu que entrou em contato com os clubes e obteve respostas positivas em relação aos repasses. Sobre o caso do E.C Vitória, especificamente, a CBF garantiu que o repasse havia sido feito.
No entanto, essa informação não se fundamenta na apuração desta matéria, nem nas declarações das jogadoras, e até mesmo não se confirmou segundo as declarações do próprio clube envolvido.